Em meio à crise gerada pela pandemia, o Brasil vem apresentando uma recuperação econômica surpreendente, puxada principalmente pelo bom desempenho dos setores de construção civil, indústria e comércio, aliado aos estímulos fiscais e monetários, como o auxílio emergencial.
No entanto, o risco fiscal está em toda parte e a retomada é heterogênea, avaliaram especialistas do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre/FGV) durante um seminário online que aconteceu na manhã desta segunda-feira (28) com o objetivo de traçar algumas perspectivas para a economia brasileira.
“Diferentemente da zona do euro e dos Estados Unidos, onde vemos os Bancos Centrais quase de joelhos pedindo ao Congresso que mantenha o apoio fiscal, porque sabem que só a política monetária não vai resolver a crise, no Brasil temos um desconforto com as contas públicas. E o risco fiscal está em toda parte: no câmbio, com a nossa moeda sofrendo mais depreciação frente ao dólar que os pares da América Latina, nos níveis de juros, na inclinação das curvas de juros, etc”, diz José Júlio Senna, chefe do centro de estudos monetários do Ibre/FGV e ex-diretor do Banco Central.
Segundo ele, esse risco fiscal só não esta sendo refletido com clareza na taxa Selic – que está em 2% ao ano, menor patamar da história.
“Talvez porque o Banco Central fez cortes além do que deveria e, na atual situação, isso é perigoso. Temos juros perto de zero em um momento em que as despesas geradas pela pandemia e a incerteza sobre a preservação do teto de gastos aumentam ainda mais os riscos fiscais”, diz Senna.
Por isso, ele acredita que um ajuste fiscal para colocar as contas públicas em dia deveria ser prioridade neste momento, mas ele se torna impossível quando não existe uma manifestação por parte do poder executivo sobre o tema.
“Temos indícios para vários lados e nenhuma certeza. É um cabo de guerra. De um lado o presidente suspendeu o Renda Brasil passando a mensagem de que deveria respeitar o teto de gastos, mas por outro lado não age de forma firme para restringir o crescimento absurdo das despesas obrigatórias“, afirma.
Senna entende, ainda, que o resultado das pesquisas políticas do governo tem dado um “gás extraordinário” para o presidente.
“Os níveis de ótimo e bom melhoraram e o governo recebe a mensagem de que o que está fazendo tudo certo e segue investindo em uma reeleição. Mas me parece uma avaliação incorreta da presidência evitar o ajuste de fiscal agora. O grande drama do risco fiscal estar em toda parte é justamente o fato de que ele dificulta a retomada da economia”, avalia Senna.
Silvia Matos, coordenadora do Boletim Macro do Ibre/FGV, acrescenta que a pandemia teve efeitos distintos nos setores no Brasil e no mundo. Por isso, embora a recuperação esteja acontecendo, ela é desigual.
“A recuperação vem com a reabertura gradual da economia, mas também dos estímulos gigantes da ordem fiscal e monetária. No agregado da economia no país, temos dados positivos. Mas alguns setores estão sendo o freio de mão do processo, como o setor de serviços e bens de capital”, diz Silvia.
Armando Castelar, coordenador de economia aplicada do Ibre/FGV, entende que, apesar de a recuperação econômica ter sido surpreendente, com um bom pacote de estímulos fiscais e monetários, o acerto com as contas públicas não pode ficar de lado.
“Acho difícil fugirmos de uma crise fiscal na atual situação. Mas vira um efeito cascata. O setor de serviços foi severamente impactado, e por [ele] ser um dos que mais emprega no país, o desemprego também está alto. Para fazer a economia voltar, precisamos entender que estamos passando por uma crise de saúde, portanto, políticas públicas de saúde poderiam resolvê-la”, afirma.
Segundo ele, o aumento de gastos foi inevitável e os benefícios emergenciais foram importantes, mas, de fato, os efeitos fiscais são graves. “É um engano achar que apenas aumentar os gastos e dar auxílio financeiro vai resolver todos os problemas. A solução tem mais a ver com a saúde e protocolos de segurança”.
Fim do auxílio emergencial
Segundo Senna, a situação do Brasil em relação ao fim dos estímulos é diferente do padrão que se observa no mundo, em lugares como nos EUA e no Reino Unido, por exemplo.
“Os governantes, de modo geral, estão preocupados com a preservação dos estímulos porque a manutenção deles por muito tempo aumenta gastos e desestimula a busca por emprego. Ao manter uma renda básica você sanciona a posição confortável de quem tá recebendo dinheiro”, explica.
Assim, o “desmame” do auxílio por parte da população, a partir de janeiro de 2021, pode ser mais um problema.
“Que estímulo os brasileiros vão ter para procurar setores da economia que estão se revelando mais dinâmicos e sair da inércia? Temos que impulsionar uma retomada sólida. Mas nosso histórico na administração do dinheiro público é ruim e agora está crítico. Então, é um dilema: se você corta os benefícios, as pessoas podem não sobreviver e, se manter o endividamento, vai piorar”, pontua.
Para Silvia, a política de estímulo foi necessária para a economia não afundar ainda mais. A saída desse auxílio, porém, pode deixar muitos trabalhadores informais e famílias de baixa renda em situação de extrema fragilidade.
“No momento, temos uma extensão do benefício com uma redução de valores R$ 600 pra R$ 300. Mas a preocupação é grande sobre como vão ficar as famílias sem o auxílio. A retomada dos empregos não acontece do dia para a noite”, diz.
Ela ressalta, ainda, que a recuperação lenta no setor de serviços, que é chave para a economia, impacta muito o mercado de trabalho. “Os trabalhadores informais sofrem muito mais, já que os trabalhadores formais podem contar com seguro-desemprego e FGTS, por exemplo. Essa crise é muito diferente porque os efeitos são muito difíceis de serem resolvidos no curto prazo”, diz.
Reforma tributária
Na tentativa de equilibrar o fim do auxílio emergencial com o problema fiscal, uma possibilidade seria usar a chamada “CPMF Digital”, novo tributo que incidiria sobre operações financeiras, para financiar a desoneração da folha de pagamento – redução dos tributos pagos pelas empresas sobre os salários dos funcionários – que está inclusa na segunda parte da proposta de reforma tributária do governo (saiba mais aqui).
“Não tem como negar que houve demanda social para o auxílio emergencial, mas estamos no patamar altíssimo de gastos. Há considerações para a criação da CPMF Digital, novo tributo que vai bancar a desoneração da folha de pagamento, o que poderia incentivar as contratações no país. Mas como fazer isso? Não podemos simplesmente aumentar a carga tributária. Temos necessidade e reformular nossas políticas e sociais para serem mais eficientes”, afirma Silvia.
Mas uma decisão precipitada sobre o financiamento da proposta de desoneração, ressalta, pode ter efeitos maléficos para a economia.
“Nosso sistema tributário é caótico. Sabemos que a discussão está muito mais sobre mudar os tributos do que aumentar a tributação. Mas a preocupação atual é com a desoneração e achar meios de financiar isso. É super meritório criar políticas de redução de custos de trabalho, mas também é caro. E os fins não justificam os meios, financiar uma política desse porte em um momento de endividamento alto pode gerar impactos econômicos perversos. Precisamos avaliar com muito cuidado”, diz.
Castelar acrescenta que a tributação e gasto público afeta os setores de formas diferentes.
“Claro que setores que empregam muita gente tem muito interesse em desonerar a folha salarial. Mas parece ser o debate errado em um momento quem o problema fiscal está em toda parte. A questão agora é como equacionar o problema fiscal, que é uma tarefa difícil, mas não impossível. A carga tributária no Brasil é alta bem como a arrecadação, mas como esse dinheiro será gasto é uma questão política”, afirma.
No âmbito da reforma tributária, Silvia entende que o tempo de debate poderia ser melhor aproveitado para considerar novos impostos sobre a renda.
“Aumentar as alíquotas de quem pode pagar mais e tentar combater a desigualdade. Isso seria importante discutir antes dos tributos sobre transações financeiras, como a CPMF digital, e das medidas do novo pacto federativo – ambos são temas que vêm sendo discutidos pelo governo há um bom tempo e nada foi definido ainda”, afirma.
Eleições americanas
Outro tópico abordado durante o seminário foi o impacto das eleições americanas no Brasil, que pode mudar o cenário do Brasil no médio prazo, segundo Castelar.
“Teremos um período de bastante volatilidade nos mercados no curto prazo, com efeitos na Bolsa e no câmbio e o Brasil vai sentir esses efeitos principalmente devido à relação próxima entre Jair Bolsonaro e Donald Trump”, diz. As eleições acontecem no dia 3 de novembro.
Considerando os cenários, ele entende que a a eleição do democrata Joe Biden teria impactos não triviais ao Brasil e do ponto de vista de governança seria mais negativa.
“Causaria um problema de inserção global porque Biden tem um viés de pensamento oposto ao de Trump, portanto também diferente do nosso presidente. Ainda, a forma com que estamos lidando com a questão ambiental pode ter impacto relevante nesse processo de afastamento entre os países. Seria um risco a mais na atual situação”, afirma.
Por outro lado, uma vitória de Trump tende a ser mais positiva para o Brasil. “Daria um novo fôlego ao poder executivo e seria um sinal mais forte de que uma reeleição seria possível, já que as trajetórias são parecidas’”, diz.
Segundo ele, ainda é cedo para cravar como a reeleição de Trump se traduziria por aqui na prática, mas traria um “fortalecimento pessoal para o Bolsonaro”, já que seria possível ver uma disposição maior do Congresso em trabalhar com o presidente, se a chance de reeleição fosse maior.
fonte: InfoMoney, escrita por Giovanna Sutto